sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Que se danem as formiguinhas

Cheguei do futebol, madrugada adentro e dei uma olhada despretensiosa no facebook. Cliquei no primeiro link que realmente me chamou a atenção. Era uma matéria curiosa, de um site qualquer, que trazia um vídeo inusitado de uma experiência inusitada: jogaram alumínio líquido dentro de um formigueiro. O resultado foi uma peça bela e interessante, que sugeria uma obra de arte, criada pela tão conhecida engenhosidade das formigas. Desci um pouco mais naquela página e comecei a ler os comentários que ali existiam ao mesmo tempo que organizava minhas próprias observações acerca da tal experiência. O que se seguiu após essa outra despretensiosa consulta foi uma embate interno entre as várias opiniões postadas ali e as minhas, postadas aqui, nessa mente fértil de cronista. Enquanto lia e refletia sobre o que lia, parecia curtir e "descurtir", aplaudir e vaiar, internamente, cada comentário exibido ali, como se minha opinião sobre o assunto estivesse sendo moldada, tal qual o alumínio nos vãos e "desvãos" do formigueiro. Inicialmente, pensei, com ironia: "Quem foi o indivíduo que teve a brilhante ideia de jogar alumínio líquido dentro de um formigueiro?" Segundos depois pensei nas formigas. Confesso que senti pena. Coitadas! Morreram à serviço do que muitos, provavelmente, chamaram arte. À serviço não! Foram mortas de forma cruel e arbitrária. Li comentários exaltados e recheados de insultos que condenavam veementemente os que haviam se interessado pela experiência, como se estes fossem nazistas a matar inocentes e a fazer com eles experimentos científicos que seriam justificados pelo bem que trariam a humanidade. Senti vergonha de ter demorado tantos segundos até pensar nas formiguinhas. Mas achei um exagero tamanha revolta. Havia comentários filosóficos que falavam das formigas como seres vivos e merecedores de respeito e dos humanos como seres vivos e cheios de  desrespeito e de futilidades. Havia piadas e palavrões. Não me contive e ri do exagero destes e do humor negro daquelas. Mas o comentário que mais me chamou a atenção dizia exatamente assim: " Ter dó da formiga que está no quintal dos outros é fácil!". Pensei no meu quintal. E nas formigas dele. Pensei o quanto seria interessante acabar com um formigueiro indesejável que houvesse nele e, além disso, levar para casa uma peça, no mínimo, interessante, para adornar a sala. Pensei nas formigas que fazem fila indiana pelo quarto, pela cozinha, pelo banheiro e que se metem dentro dos potes de açúcar e vão parar no suco do almoço. Por alguns instantes as quis mortas. Concordei com o comentário citado acima e também com alguns outros que comportavam tal ideia ou pensamento... É moda ter ideologia no Brasil dos protestos. Ter o que dizer ou opinar sobre tudo, com clareza, firmeza e destemor. A dúvida, a incerteza ou a ignorância, ainda que efêmeras, são condenáveis. Mas nem tudo é o que parece ser e nem todos tem o que parecem ter. Pois por que, então, o poeta cantaria: "Ideologia, eu quero uma pra viver!" ? Vá em frente, caro leitor, e chame a isso do que quiser: falsa moral, hipocrisia ou qualquer outra coisa do tipo... eu chamo de pseudo-ideologia. É tudo falso, camuflado, egocêntrico, político. É ser corrupto e corruptível, mesquinho e patético. Aqui, no país sede da pseudo-ideologia, é muito "alumínio" pra pouca "formiga". E não surge, disso, obra de arte alguma... Saí daquela página com medo de ser pseudo-ideológico e contraditório, mas ao mesmo tempo feliz por não "ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Discordei de ambos os grupos, individualmente. Dos que aprovaram e dos que desaprovaram a experiência. Mas concordei com ambos. Descobri que a ideologia é coisa muito complexa para a minha humilde crônica filosófica ou minha efêmera experiência epifânica. Ela não é coisa banal, que se compra numa esquina, se proclama em outra e se vende numa terceira. Vai mais além... Ela ultrapassa a medida das formigas e as fronteiras do formigueiro...



-Danillo Melo-
  13/12/2013

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Uma crônica na esquina

Eram quase três da madrugada. Estávamos eu e o poeta Gleison Nascimento discutindo as coisas da vida, como dois filósofos. A rua estava um breu. Um possível observador da madrugada notaria, com provável curiosidade, que dois poetas pequenos - embora se vissem  grandes - conversavam, noite adentro, como se estivessem batendo um papo, numa calma tarde de verão. Somente os guardas noturnos, que circulavam com frequência sobre suas motos, quebravam a calmaria reinante. Essas conversas, o leitor conhece bem, porque já foram mencionadas em crônicas anteriores. Vão do impiedoso capitalismo ao tão comentado preconceito sexual e dos problemas de relacionamento afetivo aos de criação literária. Esses e tantos outros assuntos são temas de conversas que varam a madrugada, acompanhadas por um silêncio pacificador, que não se vê em outros momentos num bairro do subúrbio do Recife, e por dois copos descartáveis e um refrigerante de dois litros. Se poetas fazem coisa mais produtiva na madrugada, nós não sabemos. Aquela parece ser a nossa maneira mais comum de sermos poetas. Já tínhamos tomado todo o refrigerante e mudado de calçada. Estávamos de pé e já tínhamos falado sobre os protestos no Brasil e no namoro. Já tínhamos conversado sobre nossos projetos literários e nossa falta de inspiração. Foi aí que avistamos um gênero literário... na esquina... Era um homem velho, nos seus quase oitenta anos, andando de lá para cá, batendo com sua bengala no chão, como se marcasse seus passos. Vinha de alguma lugar, parava na esquina e passava vários segundos ali, distante, com a mão na testa, como se observasse a avenida, ao longe, ou o horizonte, mais longe ainda, ou como se visse ou esperasse alguém. Depois disso, voltava para o lugar de onde viera e pouco tempo depois recomeçava o ciclo. Nunca mudava a sua cadência. Era como um balé, executado com paciência, atenção e maestria. Comentamos sobre tudo aquilo, rapidamente, mas logo voltamos a nos concentrar em nossa conversa. Porém cada vez que o ciclo se repetia, ficávamos mais curiosos em nossas tentativas de explicar o que se sucedia. Analisamos a cena mais cuidadosamente: o chapéu, o casaco, a bengala, a barba, os passos, a espera, a esquina... Comentamos, ponderamos um pouco, depois sorrimos. Ficamos curiosos, depois eufóricos e entusiasmados. Começamos a divagar, em voz alta, com rapidez e insistência, com uma alegria e uma imaginação de criança e de poeta. A madrugada mostrara seu encanto. Nossa mente literária transformou aquele velho solitário num personagem. O cenário era perfeito e emblemático: a esquina. O tempo era mágico: a madrugada. E os fatos eram misteriosos. Imaginamos muito e tudo. Que aquele velho estava ali porque era um sonâmbulo. Porque era louco e tinha se perdido. Porque gostava de ficar só durante a madrugada contemplando o nada. Porque procurava sentido para uma vida que um dia já teve algum. Porque esperava por alguém que já tinha partido e de quem sentia saudades. Porque era uma entidade guardando a encruzilhada. Porque era um espírito vagando pela madrugada. Ou porque esperava, num encontro marcado, pela morte. Nossa imaginação nos levou tão longe e nos sentimos tão honrados e excitados por sermos parte daquilo que decidimos correr até a esquina e desvendar o mistério que, juntos, presenciávamos. Quando o velho deixou a esquina, deu as costas e começou a andar, lentamente, do modo que fizera desde o começo, nós corremos para a outra esquina, a esquina de nossa rua, a fim de saber para onde ele iria. Durante os poucos metros percorridos conversamos que nossa presença poderia intimidá-lo e tolher suas ações. Imaginamos o que faríamos se dobrássemos a esquina e descobríssemos que não havia homem algum na direção para onde o tínhamos visto partir. Chegamos a achar que nossa presença quebraria o encanto do que realmente deveria acontecer, mas nossa curiosidade era maior do que a possibilidade de nunca desvendarmos tal mistério. Quando chegamos na esquina, vimos o velho de pé, a poucos metros de onde saíra, repetindo os mesmo gestos que o tínhamos visto fazer repetidas vezes. Ficamos em silêncio e esperamos, ansiosos, pelo desenrolar dos fatos. O velho se virou, parecendo não se incomodar com nossa presença, e rapidamente entrou num beco escuro que ficava ao lado de um primeiro andar, com ar de abandonado, que existia a duas casa da esquina... "É o seu Zé, poeta!" - disse-me o poeta Gleison Nascimento. "Que Seu Zé?" - indaguei. "Aquele que vende algumas frutas na frente desse primeiro andar, aí, na avenida..." - respondeu ele. Em um segundo reconheci o velho que tanto havia nos fascinado naquela madrugada. Voltamos para casa um pouco decepcionados pelo resultado de nossa aventura, mas nem tanto, pois de literatos, que somos, ficamos entusiasmados em contar as nossas próprias versões do desenrolar daquela intrigante história... Tempos depois, o poeta Gleison Nascimento me apresentou um conto belíssimo, intitulado "À espera de Rosália" ( leiam, por favor). Saímos de lá felizes. Não foi um velho que vimos naquela esquina, nem um gênero literário, mas dois. Ele, o poeta, encontrou um conto. Eu, uma crônica... na esquina...Ei-la.

-Danillo Melo-
 15/10/2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O amor é uma droga


Começa sempre assim: primeiro, a  mera curiosidade, segundo, o  interesse genuíno e inocente, terceiro, a atração. Depois todo mundo prova e aprova e desaprova e aprova... Nem adianta se opor. Ninguém consegue se impor. É como um fator biológico, uma necessidade latente, depois pungente, depois explícita. É como um bálsamo que perfuma esse viver, tantas vezes, vazio e melancólico. Perfuma, porque corta. Corta para que perfume. Quem nunca usou, vai usar. Quem diz que não quer, está mentindo. Quem se proclama livre, é ingênuo ou mentiroso. Quem é livre, não é humano ou não existe. O amor é uma droga. De repente, dentro de si, as coisas começam a mudar e fora de si, lá fora, tudo começa a ficar multicor, musical e vivo, como nunca antes havia sido. Aí agente se entrega, se embebeda, se entorpece. Os amigos,uns riem. Outros, usam conosco. E ainda outros, nos aconselhem a largar. Mas nós nos afogamos, sem medo, sem medida, e muitas vezes, sem sentido...só sentindo. Aí agente se perde e se acha nunca tão encontrado na vida. Mas quando o efeito acaba, agente se acaba e se perde, novamente, e se desespera e sofre...de abstinência, de vergonha, de frustração, de dor...de cabeça, no peito, na consciência. E prometemos não usar nunca mais. Então colecionamos tentativas frustradas de viver sem ele ou de esquecê-lo, até descobrirmos que sem ele não se vive e que dele não se esquece. É quando entendemos que o amor nos permite conhecer a nós mesmos e descobrir quem somos. Porque amar é altruísta em seus meios, mas egoísta em seus fins. É a condição mínima, o desejo manifesto de se deixar levar. Nós amamos, porque nos amamos. Porque amar é o efeito de ser amado. É o nirvana, a transcendentalidade, o êxtase. O outro é o instrumento com o qual nos drogamos. É a garrafa, a bituca, a seringa. Sem o outro não poderíamos desfrutar da demonstração mais sublime do amor próprio. Sem nós, o outro não poderia fazer o mesmo. E quando descobrimos que o muito amar, muito nos fará ser amado, nós amamos mais e mais e mais...como se o instrumento que carrega a nossa droga, em vez de uma garrafa, fosse uma fonte que nunca seca. Mas se um dia seca, leva embora consigo tudo com o que havia nos drogado, deixando-nos tão a sós que não nos achamos no infinito vazio. Aí nós rimos de uns amigos, amparamos alguns outros e aconselhamos ainda outros a largar tudo. Mas quando nós olhamos tudo ao nosso redor e não ouvimos as músicas, nem vemos as cores, nós nos damos conta de que o amor tem gosto de vida e que prender-se a ele é como estar preso à liberdade. É como se cada célula do nosso corpo tivesse sido criada pra isso e isso fosse a droga e o sangue que injetamos em nossas veias para tornarmo-nos verdadeiramente seres (humanos) e notadamente vivos... Então nós largamos tudo, mais uma vez, e saímos correndo, nunca prontos, mas sempre...sempre dispostos a amar novamente...

-Danillo Melo-
  06/06/2013




quarta-feira, 20 de março de 2013

"É tiro e queda"

Abri a porta da sala.Tudo estava normal, exceto pela minha mãe e minha irmã, quase grudadas na porta, me esperando. Estranhei os olhares acusadores e as testas enrugadas. Pensei que a coisa ia ficar feia. E ficou. Colocaram as mãos pra trás e falaram baixo, quase sussurrando. Contaram que sabiam que eu estava fazendo "isso" e "aquilo" no meio da rua, que nem adiantava tentar mentir. Fui interrogado, acusado e sentenciado. Pensei que estava perdido. Morri de medo. Eu ia dar continuidade ao meu desespero quando elas olharam pra mim com um sorriso no rosto e perguntaram, quase em uníssono: "Passou, meu filho?"..."Passou o quê?", retruquei sem entender. " O soluço...", responderam elas...
Minha mãe sempre diz que "bom pra soluço é tomar susto" (o soluço deve ter gostado). "É tiro e queda". Quando fiquei mais velho, por algum motivo desconhecido para mim, a instrução e a técnica para esse problema mudaram: "Pegue um copo, coloque dois dedinhos d´água, fique de costas pra janela, beba um gole e jogue o resto pra trás... 'é mermo que queijo' " diz ela. E sempre funcionou. Essas coisas sempre funcionam. O leitor vai dizer que é psicológico. E talvez seja, mas elas sempre funcionam. Também tem a técnica da linha: Pegue um pedaço de linha de um tecido qualquer, faça um pequeno caracol com ela, ponha um pouco de saliva e cole no centro da testa que o soluço passa... A vida moderna não conseguiu deixar tudo pra trás. Tem coisas que atravessam o tempo. Existem ditados, costumes e superstições que estão arraigados no consciente e no inconsciente do nosso povo, que são traços distintivos da nossa cultura, da nossa identidade... Assobiar de noite chama cobra. Criança que brinca com fogo, mija na cama. Desgraça é nome feio. Não se fala dentro de casa pra não chamar coisa ruim. Se a coruja passar "cortando" é porque alguém vai morrer. Quem pega no pé do morto não sonha com ele. Ninguém, nem mesmo os que não são supersticiosos, deixa a sandália virada de cabeça pra baixo. É só pra garantir que a mãe estará bem. "Boa Ave-Maria faz, sua casa está em paz" (ainda estou tentando entender essa!). Tá com um "galo" na cabeça? Pegue a peixeira e pressione a parte lateral dela sobre o "galo" que ele desaparece. Falar maldade não pode, senão "os anjos maus dizem amém". E vamos deixar de conversar "miolo de pote", porque " tudo de mais é muito e tudo de muito é veneno". O que é interessante é que não há recurso científico capaz de arrancar tais "verdades", instaladas, há tanto tempo, nas mentes de tantos homens e mulheres... Quando for dormir, não faça como eu, não entrelace as mãos como um defunto, senão terá pesadelos. Ao varrer a casa, o faça na direção da porta, colocando as coisas ruins para fora. Se você, querido leitor, não atende quando chamam seu nome é porque você está fazendo "ouvido de mercador". Se você não consegue se concentrar e ler está crônica, deve estar pensando na "morte da bezerra". Perdeu "o fio da meada"? Peça a São Longuinho para o achar e por favor, prometa a ele que dará três pulinhos quando o tiver encontrado... Minha mãe sempre dizia que os espinhos do mandacaru deixam a pessoa aleijada. Temos um no jardim, perto do muro. Estava pintando a casa, no final do ano passado, quando bati, com força, alguns dos meus dedos nos espinhos. Doeu muito. Eles ficaram inchados. Me preparei para perder os movimentos dos dedos. Fiquei preocupado. Não sabia que cria tanto naquilo. Meus dedos estão bem. Ainda tenho o privilégio de usá-los para escrever... Minha mãe é categórica em tudo o que faz e diz. Ela é "pau pra comer sabão e pau pra saber que sabão não se come". Melhor acreditar nela. Só porque ela errou no caso dos espinhos não significa que irá errar em todas as outras coisas, não é?! ... Há muito dias atrás, na faculdade, aprendi mais uma técnica para passar o soluço. "Você pega a pessoa distraída e mete a colher de pau na cabeça dela! É tiro e queda". Meu amigo, Thiago, me ensinou uma técnica que talvez minha mãe não saiba. A lista é infindável. Se o leitor nunca ouviu nenhuma dessas, converse com alguém mais velho por poucos minutos e aprenderá mais disso. Se leu esta crônica sem pular nenhum parágrafo, atento a cada pormenor de tudo o que foi citado, terá um campo vasto de coisas a serem apreciadas, questionadas e estudadas...pode confiar, "é tiro e queda".

-Danillo Melo-
 20/03/2013

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Escritor trabalha assim...


Foi numa conversa de bar, ou melhor, de lanchonete. Estávamos eu e o poeta Gleison Nascimento tomando refrigerante e conversando sobre literatura. Escritor trabalha assim, sem carteira assinada, sem bater ponto, sem chefe e muitas vezes sem ambiente de trabalho. Era sobre isso que conversávamos. Estar ali, tomando refrigerante, era trabalho. Porque escritor é assim: ele observa e vive ou vive e observa e depois escreve. Por isso, muito do que se escreve começa longe do papel e da caneta ou do notebook. Fiquei feliz e orgulhoso. Sempre quis trabalhar assim, tomando refrigerante e conversando com um velho amigo. Mas hoje foi diferente. Vou contar-lhes como...
Larguei do trabalho muito mais cedo que  de costume. Era pouco mais de uma hora da tarde e eu tinha acabado de almoçar. Ia andar muitos metros até o terminal do ônibus Engenho do Meio, então decidi ficar ali mesmo, na frente do prédio onde eu estava, no terminal do ônibus Cidade Universitária. Atravessei a rua e vi que o ônibus estava se preparando para sair. Na calçada, havia uma mulher, em pé, um tanto quanto ansiosa e duas moças, sentadas, conversando despreocupadamente. Eu me sentia o mais feliz de todos. Ia chegar em casa dentro de mais ou menos uns 15 minutos e retomar, com prazer, um conto inacabado.  Chegou a hora do ônibus partir. Eu e a mulher subimos e as duas moças, que ainda conversavam tranquilamente, nem se moveram. O ônibus partiu sem elas e eu me perguntava, então, o que elas faziam ali... Sentei feliz e despreocupado. O ônibus seguia o seu trajeto de sempre e eu só pensava no conto. De repente, o veículo entrou numa rua diferente. Fiquei surpreso. Me perguntei por que a motorista queria cortar caminho. Segundos depois, entramos num outra rua, e essa era  muito oposta ao caminho original para se tratar de um atalho. Fiquei decepcionado. Pensei ter pego o ônibus errado e tinha. Senti vontade de me levantar e ir até a cobradora com aquela cara de bobo perguntar que ônibus era aquele. Deduzi sozinho qual era o ônibus  e permaneci sentado, só para evitar ser bobo para mais alguém, além de mim mesmo. Eu sabia onde eu estava, mas não sabia o trajeto que aquela linha faria. Enquanto o ônibus se movia, eu imaginava qual o lugar que eu desceria  e que seria o mais perto possível de casa, para pegar um outro ônibus ou até mesmo ir andando. Estava a imaginar o terceiro ou quarto lugar diferente para descer quando o ônibus se afastou mais ainda de qualquer lugar que eu imaginara. Fiquei frustrado. Não fiz nada. Minha apatia externa não revelava nada da minha inquietação interna. Mentalmente, eu estava correndo de um lado para o outro. Fiquei chateado. Foi quando tudo mudou... Eu estava vivendo uma crônica! Uma crônica pronta! Levantei e fui até a cobradora. Perguntei para onde o ônibus iria e ela respondeu: "San Martin". Eu estava indo para bem longe do meu objetivo. Com certeza fiz cara de mais bobo. Ela me olhou e perguntou onde eu queria ir. Era demais pra mim ver a supresa dela quando eu desse a minha resposta. Não respondi nada. Ela me advertiu que eu deveria descer naquele momento, antes que o ônibus entrasse na avenida que o deixaria ainda mais longe do meu destino. Com pouca simpatia, ela puxou a cordinha usada para pedir parada e me disse: "você vai descer ou não?" Eu me dirigi até a porta e desci. Desci sorrindo, com cara de bobo e de cronista. Eu estava na Avenida Abdias de Carvalho. Sabia bem onde estava. E sabia que era longe de casa. Comprei uma água e andei alguns quilômetros até a Avenida Caxangá, debaixo do sol forte, pra pegar o coletivo certo. Lembrei-me das moças que conversavam com tranquilidade no terminal. Acho que elas estavam esperando Cidade Universitária, o ônibus no qual eu deveria ter subido. Sorri quando pensei nisso. E fiquei aliviado por ter pego o ônibus errado e a ideia certa. Talvez eu poderia ter descido não tão longe de casa, mas meu sacrifício involuntário e em prol da literatura, tinha valido a pena. Passei o caminho de volta para casa vivendo cada pedaço da minha crônica como seu eu fosse um deus. Senhor de cada estrutura linguística dela. Saboreando cada detalhe escrito pela minha pena imaginária e vivido, simultaneamente, por meu corpo fatigado. Cheguei em casa cansado e suado, porém feliz, louco pra gozar do penoso e prazeroso ofício de escrever. Cheguei com a crônica da semana pronta, esperando, no mundo das ideias, com ansiedade, a hora de virar texto... Entendi que é assim que um escritor trabalha... Sendo um pouco bobo também. Me senti bobo, mas escritor. Me senti meio bobo, mas todo escritor. E fiquei orgulhoso, muito orgulhoso... Mas quando vocês, queridos leitores, lembrarem-se de mim, lembrem-se mais do escritor que do bobo, porque o bobo, de escritor, tem tudo e o escritor, de bobo, não tem nada...

-Danillo Melo-
 19/02/2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Agressão aos animais


Ele estava lá, sentado na escuridão das calçadas na saída de um beco que dá na rua da alfândega, ao lado do estacionamento da livraria cultura. Eu vinha caminhando da rua da moeda, me dirigindo ao cais de santa Rita onde eu pegaria o ônibus para voltar à minha casa onde um delicioso misto quente com pão dormido me esperava.
Entrei justamente no beco onde o delinquente estava sentado. Agora era eu em uma extremidade do beco caminhando à outra extremidade, onde ele estava. Bastou entrar no beco e o marginal começou latir. Pensei que era apenas para aparecer, afinal de contas cão que ladra não morde, não é? Caminhando passei por ele que agora rosnava como a Polícia Militar em protestos da classe estudantil.
Eu já estava atravessando a rua da alfândega quando se deu a cena de agressão a um animal. Eu caminhava sem olhar para trás por não ter me importado tanto com as ameaças no beco, olhava mesmo era se tinha alguém suspeito na ponte por onde eu teria de passar para chegar ao cais. Não se pode vacilar nas ruas do recife à 01:20H da manhã. Eu ouvi os latido ficarem cada vez mais perto e nem, sequer, suspeitei que ali seria a cena de um crime.
Os latidos iam aumentando de volume. O animal parecia mais perto. Um crime estava para acontecer e eu não tinha noção do perigo que estava correndo. Ouvi, de repente, os latidos pararem e senti uma fisgada no pé esquerdo. O cachorro me mordera, saíra correndo como um covarde e ficara no outro lado da rua, ainda latindo em minha direção. A raiva veio à cabeça. Como se agride alguém assim, sem motivos? E os direitos que me cabem, onde ficam? Acho que ele nunca ouviu falar de direitos humanos... Depois os ativistas da ‘Dogs Liberation Front’ dizem que somos nós, humanos, os animais. Não compreendo!

-Gleison Nascimento-
21/01/2013

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Em cima do muro

Rua humilde. Casas humildes. Silêncio. Um ou dois moradores, ao longe, indiferentes a quase tudo. Ele e os garotos trajavam roupas simples, do tipo " as primeiras que encontrei no guarda-roupas". Os garotos tinham entre 8 e 10 anos. Ele, mais de 20. Era negro. Pequeno. Cabelo desarrumado. Parecia um adolescente. Tinham uma escada. Era uma escada de madeira, comprida, daquelas feitas em casa mesmo. Ele olhou para um lado e para o outro, desconfiado. Tirou as sandálias, levantou a escada e a encostou no muro. Era um muro recém-erguido. Cheirava ainda a cimento. Sentou-se no muro e olhou ao redor, mais desconfiado que antes. Os garotos assistiam tudo. Do outro lado era assim: um quintal e três casas. A primeira delas, ficava do lado direito do portão. Tinha um outro muro recém-erguido perpendicularmente ao principal. As outras casas ficavam mais longe, para dentro da propriedade. Aparentemente, não havia ninguém em nehuma delas. "Nem pessoas, nem cachorro", pensara ele. Agora vinha a parte mais difícil: passar a escada pro outro lado. Começou a puxar, com um razoável esforço, a escada para si. Era uma manobra perigosa e difícil. Fazia barulho. Chamava a atenção. Sentiu medo e vergonha. Olhava para todos lados, assustado. Para as pessoas que o viam, ao longe, fazia cara de abestalhado. A escada raspou no muro, na telha e no corpo. Fazia barulho. Conseguiu colocar a escada do outro lado, dentro do quintal, encostada no muro. Começou a mexer com certa ansiedade na posição da escada. Estava incomodado. A escada caiu. Na rua, assistindo tudo, estavam os dois garotos que o acompanhavam e mais uns três ou quatro de menor idade que tinham se aproximado. 

" Ei, fera, pega a bola aí em cima..." - disse um deles.

"Bola?!..Num tem bola nenhuma aqui em cima, não" - respondeu, olhando para o telhado da casa.

Quando se voltava para continuar a luta com a escada foi pego no flagra. Ficou amedrontado.

"Ei! Num suba aí, nao! Desça daí, vá!"

Um vasculhante se abrira. Era uma mulher. Ele ficou em cima do muro. Não sabia se mentia ou se contava a verdade, porque a verdade com certeza pareceria mentira e talvez a mentira se sairía melhor como verdade. Não mentiu.

"Ô, moça desculpe, viu?! É que eu sou vizinho da esposa do André e vim entregar a escada que ele tinha emprestado...Aí cheguei aqui e num tinha ninguém....e essa escada é muito pesada pra voltar com ela...aí eu pensei em colocar ela aqui dentro, entendeu?!"

Ela fez que sim com a cabeça.

" A senhora avisa pra ele quando ele chegar? Tá aqui no cantinho, viu?! Desculpe..."

Aí ele desce do muro, desconcertado e de fininho, arranhado e envergonhado... com cara de mais abestalhado que antes. Porque ficar em cima do muro não é legal. Muito menos no muro alheio...


-Danillo Melo-
 16/01/2012


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Minha doença mental


Venho por meio desta crônica informar aos amigos que sou portador de uma deficiência mental cujos sintomas passaram a me incomodar há cerca de três meses. A disfunção ótica colomemorial é uma doença bastante comum em homens de qualquer idade. Popularmente conhecida como memória daltônica esta doença vem, desde que o mundo é mundo, acabando com a paz de relacionamentos alheios.
- Meu bem, lembra da roupa que eu estava quando nos encontramos pela primeira vez?
- Claro, meu bem... Não tem como esquecer aquela saia branca que desenha, como nenhuma outra, as curvas do teu corpo, neguinha.
- A saia era branca, nego.
- Jura?
-...
- Mas era saia! (Puta merda.)
-e a blusa, lembra?
- Claro, neguinha, aquela tua blusa de tricô, amarela...
- Era branca, Gleison. E aquilo não é tricô, é renda.
- Tem certeza, nega? Juro que vi amarelo...
- Devia estar olhando pra outra mulher, então... Porque a minha blusa era branca.
- Me desculpa, meu bem...
 Este sujeito merece desculpas. É vitimado pela incompetência de sua mente tão pequena. Que outra explicação, que não seja demência, se pode dar à esta incapacidade? Que explica um sujeito não conseguir lembrar a cor da roupa da mulher que lhe faz tanto bem? Mulher, esta, que este sujeito passa os dias e as noites a admirar... Problemas mentais... Só pode.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Presente de natal.



O pequeno Antônio Carlos sentou-se ao lado do pai onde passou a tarde inteira assistindo TV.              Logo ele que, elétrico, nunca assistira TV por mais de meia hora... O pai desconfiou.
- O que tu queres, Toni? Anda, desembucha!
- Ééé... Papai... ééé... Promete uma coisa, antes?
- Prometer?
- É, papai... Prometer.
- Prometer o que, filho?
Com os olhos esbugalhados e a voz de sussuro, Antônio faz a proposta.
- Promete que não vai falar nada pra a mamãe?
- É o que, menino? Diz logo, qual a causa de tanto segredo?
- Promete?
-Ai, meu Deus, Toninho. Olha lá, moleque! Tudo bem, vai... Prometo! (Dedos cruzados)
- Papai, a mamãe me falou pra que eu não pedisse presente de natal para o senhor... Falou que o senhor entrou no emprego agora e que está apertado, no momento. Eu juro que tentei não pedir, mas é que eu quero muito um Playstation3 e eu não sei se meus outros papais vão ter grana...
- outros papais, Toni?
- Sim. Os outros papais, papai!
- No plural?
- Mais de um!
- Mais de um?
- Na verdade são dois, além do senhor.
- Conversa mole, menino... Agora deu pra arranjar pai na rua, foi?
- É sério papai... um deles até conseguiu emprego para o senhor!
- Cardoso... Filho da puta. Por isso fez tanta questão de me empregar... Canalha! Pensou alto. Quem te pôs essa idéia na cabeça, filho?
- A mamãe, ué. Todo dia, antes de dormir, ela me põe pra falar com ele.
 As lágrimas desceram.
- O que foi, papai? Fica triste, não. A mamãe sempre fala do senhor para ele. Nunca se esquece de pedir para o senhor crescer na empresa, para as coisas melhorarem aqui em casa. Digo isso porque escuto!
- Tudo bem, filho... Você já os encontrou muitas vezes?
- Na verdade eu nunca encontrei com eles, papai. Nenhum dos dois. A mamãe diz para eu ter paciência que, quem sabe, um dia posso conhecer algum deles.
- Fale mais sobre o segundo papai, meu amor...
- Ah, mal o conheço. Uma vez, por ano, a mamãe me ajuda a escrever uma carta para ele.
- E ele?
-  Nunca respondeu!
- Nunca?
- Não. Ele me traz um presente no natal, mas nem sequer aparece. Entrega a mamãe e ela põe ao lado da minha cama, para me fazer uma surpresa... Todo ano a mesma coisa, mas o senhor vai me dar o Playstation ou não, papai?
- Vai pro teu quarto, filhão. Conversamos sobre o videogame outra hora. Agora o papai precisa conversar com a mamãe, ta bom?
Dos momentos seguintes não se faz necessário um relato muito extenso. O Antônio Carlos ficara em seu quarto o resto do dia e, provavelmente, ouvira tudo o que foi gritado por seus pais, na sala. Entre gritos e lágrimas se findara, naquele início de noite, mais um casamento e nascera mais um filho de pais separados.
Quando o pai do pequeno Antônio Carlos adentrara em seu quarto, encontrara o filho ajoelhado aos pés da cama, de olhos fechados e lágrimas constantes.  O menino nem, sequer, olhou para trás quando recebera um beijo na cabeça e ouvira seu pai dizer que estava indo embora, bater a porta e sair pelo mundo.
- Papai do céu, avisa pra o papai Noel que não quero mais um Playstation 3. Eu só quero que vocês façam meu papai voltar pra casa... Prometo que pra o resto da vida, não peço mais nenhum presente...

- Gleison Nascimento-
12/01/2012

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Caritó


Quando completei 8 anos minha mãe começou a varrer meus pés. Era obvio, eu
estava virando mocinha e o futuro era inevitável: crescer, casar e sair de casa. Eu ainda
brincava de boneca e minha mãe já pensava nisto tudo. Filha, você jura que nunca vai
me abandonar? Juro mamãe. Jura por Deus? Juro por Deus. Nem sabia direito quem
era esse tal de Deus, o que ele fazia, onde ele morava e porque as pessoas tinham que
jurar por ele sempre que algo era importante.
O ritual era diário. Varria a sala e dizia pra eu juntar os pés que ela ia varrer para tirar a
poeira. Hoje eu sei que o ritual de varrer os pés tinha outro significado. O varrer os pés
era sinal de mau agouro para moças que sonhavam em casar.
Certo dia decidi que não queria mais juntar meus pés. Ela enlouqueceu. Sua loucura
aparente me despertou para a vida. Eu já estava com 13 anos. Dei o primeiro beijo.
O primeiro de muitos. Nunca mais meus pés foram varridos. Minha mãe sim, ficou
louca varrida tentando varrer os pés das crianças da rua. E eu, ah fui varrer o mundo
com a vassoura do corpo. Esguia, reta como piaçava chamei a atenção dos faxineiros e
diaristas dos metros.

-Susana Morais-
03/01/2013