terça-feira, 15 de outubro de 2013

Uma crônica na esquina

Eram quase três da madrugada. Estávamos eu e o poeta Gleison Nascimento discutindo as coisas da vida, como dois filósofos. A rua estava um breu. Um possível observador da madrugada notaria, com provável curiosidade, que dois poetas pequenos - embora se vissem  grandes - conversavam, noite adentro, como se estivessem batendo um papo, numa calma tarde de verão. Somente os guardas noturnos, que circulavam com frequência sobre suas motos, quebravam a calmaria reinante. Essas conversas, o leitor conhece bem, porque já foram mencionadas em crônicas anteriores. Vão do impiedoso capitalismo ao tão comentado preconceito sexual e dos problemas de relacionamento afetivo aos de criação literária. Esses e tantos outros assuntos são temas de conversas que varam a madrugada, acompanhadas por um silêncio pacificador, que não se vê em outros momentos num bairro do subúrbio do Recife, e por dois copos descartáveis e um refrigerante de dois litros. Se poetas fazem coisa mais produtiva na madrugada, nós não sabemos. Aquela parece ser a nossa maneira mais comum de sermos poetas. Já tínhamos tomado todo o refrigerante e mudado de calçada. Estávamos de pé e já tínhamos falado sobre os protestos no Brasil e no namoro. Já tínhamos conversado sobre nossos projetos literários e nossa falta de inspiração. Foi aí que avistamos um gênero literário... na esquina... Era um homem velho, nos seus quase oitenta anos, andando de lá para cá, batendo com sua bengala no chão, como se marcasse seus passos. Vinha de alguma lugar, parava na esquina e passava vários segundos ali, distante, com a mão na testa, como se observasse a avenida, ao longe, ou o horizonte, mais longe ainda, ou como se visse ou esperasse alguém. Depois disso, voltava para o lugar de onde viera e pouco tempo depois recomeçava o ciclo. Nunca mudava a sua cadência. Era como um balé, executado com paciência, atenção e maestria. Comentamos sobre tudo aquilo, rapidamente, mas logo voltamos a nos concentrar em nossa conversa. Porém cada vez que o ciclo se repetia, ficávamos mais curiosos em nossas tentativas de explicar o que se sucedia. Analisamos a cena mais cuidadosamente: o chapéu, o casaco, a bengala, a barba, os passos, a espera, a esquina... Comentamos, ponderamos um pouco, depois sorrimos. Ficamos curiosos, depois eufóricos e entusiasmados. Começamos a divagar, em voz alta, com rapidez e insistência, com uma alegria e uma imaginação de criança e de poeta. A madrugada mostrara seu encanto. Nossa mente literária transformou aquele velho solitário num personagem. O cenário era perfeito e emblemático: a esquina. O tempo era mágico: a madrugada. E os fatos eram misteriosos. Imaginamos muito e tudo. Que aquele velho estava ali porque era um sonâmbulo. Porque era louco e tinha se perdido. Porque gostava de ficar só durante a madrugada contemplando o nada. Porque procurava sentido para uma vida que um dia já teve algum. Porque esperava por alguém que já tinha partido e de quem sentia saudades. Porque era uma entidade guardando a encruzilhada. Porque era um espírito vagando pela madrugada. Ou porque esperava, num encontro marcado, pela morte. Nossa imaginação nos levou tão longe e nos sentimos tão honrados e excitados por sermos parte daquilo que decidimos correr até a esquina e desvendar o mistério que, juntos, presenciávamos. Quando o velho deixou a esquina, deu as costas e começou a andar, lentamente, do modo que fizera desde o começo, nós corremos para a outra esquina, a esquina de nossa rua, a fim de saber para onde ele iria. Durante os poucos metros percorridos conversamos que nossa presença poderia intimidá-lo e tolher suas ações. Imaginamos o que faríamos se dobrássemos a esquina e descobríssemos que não havia homem algum na direção para onde o tínhamos visto partir. Chegamos a achar que nossa presença quebraria o encanto do que realmente deveria acontecer, mas nossa curiosidade era maior do que a possibilidade de nunca desvendarmos tal mistério. Quando chegamos na esquina, vimos o velho de pé, a poucos metros de onde saíra, repetindo os mesmo gestos que o tínhamos visto fazer repetidas vezes. Ficamos em silêncio e esperamos, ansiosos, pelo desenrolar dos fatos. O velho se virou, parecendo não se incomodar com nossa presença, e rapidamente entrou num beco escuro que ficava ao lado de um primeiro andar, com ar de abandonado, que existia a duas casa da esquina... "É o seu Zé, poeta!" - disse-me o poeta Gleison Nascimento. "Que Seu Zé?" - indaguei. "Aquele que vende algumas frutas na frente desse primeiro andar, aí, na avenida..." - respondeu ele. Em um segundo reconheci o velho que tanto havia nos fascinado naquela madrugada. Voltamos para casa um pouco decepcionados pelo resultado de nossa aventura, mas nem tanto, pois de literatos, que somos, ficamos entusiasmados em contar as nossas próprias versões do desenrolar daquela intrigante história... Tempos depois, o poeta Gleison Nascimento me apresentou um conto belíssimo, intitulado "À espera de Rosália" ( leiam, por favor). Saímos de lá felizes. Não foi um velho que vimos naquela esquina, nem um gênero literário, mas dois. Ele, o poeta, encontrou um conto. Eu, uma crônica... na esquina...Ei-la.

-Danillo Melo-
 15/10/2013

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