sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O amor é isso

Amar é nunca mais sentar na janela. É se dar, se doar, se oferecer. É ser 1º coríntios 13. É descobrir, como dizem por aí, que há uma beleza gigante e muitas vezes latente nas coisas pequenas e simples... que “a simplicidade é a sofisticação suprema”. Não cabe na mente essa coisa toda... essa coisa de amar. É adimensional. Complexa. Como as palavras. Como a própria vida. Como a própria morte. É feito coisa de poeta, que quem não é, não sente. Por isso que tem gente que não acredita. Que jura que não é verdade. Que diz que não existe, como alguns dizem de Deus. Mas muita gente diz que sente ou que já sentiu... Deus e o amor. Duvido coisa simples mais complicada. A gente é que pensa, vez por outra, que é capaz de definir o indefinido, de classificar o inclassificável, de entender o ininteligível. A gente só sente. E sentir é tão particular e há tanta gente que tanto sente que o amor é, ao mesmo tempo, público e pessoal, coletivo e privado. Por isso não há quem o descreva completa ou perfeitamente, ou que dê a ele uma descrição única e acabada... uma cara, uma caricatura, um retrato-falado.... Talvez seja o indescritível o que o torna multifacetado. Mas nunca cansam, nem os poetas nem as canções, de tentar descrevê-lo, de lhe fazerem sala, de lhe tomarem por tema, fotografá-lo, retratá-lo... O amor é celebridade. É o foco dos holofotes nos palcos das vidas. Protagonista e antagonista. Herói e vilão. Salvador e algoz. Culpado de tudo que há de mais mesquinho e de mais sublime no mundo. O amor é crime. O amor é filme. O amor é fuga. O amor é fim. O amor é meio. O amor é começo. É coisa que entra na rima, mas que nela nunca cabe. Nunca coube. O amor é incontível. É o incontido no peito de muita gente. É invasor eficaz que gentil ou ferozmente se instala e derruba e levanta.... É queda. É tiro. É tiro e queda. É cura e é doença. Não tem começo nem fim, porque quando acaba (se acaba) teima em nascer novamente. É semente do infinito no vão da eternidade. Ah...O amor... o amor é o tempo explicando a vida... E a gente leva a vida toda tentando entender o que é o amor...

Danillo Melo

14.08.2015

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Meu pé de jambo

Pequeno, mas imponente. Parece contradição a fusão de tais termos, mas ele era realmente assim. Meu pé de jambo, pequenino, um pouco mais alto que o pé direito da casa, se erguia querendo ser grande, mas com o tempo foi sendo ultrapassado pelas construções ao redor, cada vez maiores e constantes. Mas era imponente quando frutificava. Parece ser coisa da natureza, essa, de ser bela quando se reproduz. Ele era assim. Havia centenas de filetes rosados que ornamentavam a árvore inteira, distribuídas entre o verde das folhas. Outros desses mesmos filetes cobriam o chão de rosa como um imenso tapete. O fruto, era de um roxo forte, por vezes metálico, que enchia de água a boca e de brilho os olhos. Não havia quem passasse e não desejasse, ou não chegasse a pedir ou até se aventurasse a pegar sem pedir mesmo, aqueles frutos deliciosos. No "tempo do jambo" eu me pendurava nos galhos com uma sacola na mão e ia colhendo aqueles frutos que pareciam ser oriundos de uma árvore duas vezes maior que aquela. Saboreava-os até me fartar. Os da casa e os da rua também. Tinha pra todo mundo. À noite, quando eu era criança, usávamos a árvore para nos esconder durante a brincadeira de garrafão. Nem temíamos os morcegos, que por lá jantavam quando a noite caía. Eu sonhava até em fazer uma casa naquela árvore, coisa que nunca fiz e nem acho que seria possível, mas vivi tanto nela que saciei ao meu modo esse desejo de criança. Com o tempo, as casas e os prédios foram crescendo e minha árvore foi se tornando cada vez menor. Eu também fui crescendo e me tornando cada vez mais ocupado e atarefado. Não mais a contemplava como antes. Já não queria subir para arrancar com as mãos os frutos deliciosos que ela carregava. Com o tempo, já não olhava para cima à procura do que saborear, nem para baixo, para observar as flores rosas que revestiam o chão do quintal. Tornei-me ocupado, moderno, proletário. Nem conseguia vê-la mais lá. Um dia, quando voltava do trabalho, percebi que a casa estava em obras. Encheram de cerâmica todo o chão do meu jardim, levantaram um muro e um portão imponentes na frente da minha casa e arrancaram meu pé de jambo do meio do terreno. Passei pela bagunça, rapidamente, com um olhar curioso, mas sem afobação e entrei no meu quarto. Nem sequer olhei para trás, para contemplar o espaço vazio que havia em meu jardim, onde antes meu pé de jambo se erguia, pequeno, mas imponente. Tudo se tornou diferente: os moradores, a rua, as casas, os prédios ao redor. Já não os conheço tão bem e nem os dou tanta atenção. Todos passaram, como meu pé de jambo e como eu, um dia. Meses depois, numa conversa qualquer, um amigo lembrou-me de uma árvore que eu tinha em frente a minha casa. " Era um pé de manga, nao era?" Achei graça e respondi sorrindo: "Não, era um pé de jambo". Depois disso, fui visitado por uma nostalgia triste que me perturbou até o momento desta crônica. Lembrei-me dele. Do meu pé de jambo. De tudo que ele representa pra mim e de como tinha sido tão seca e abrupta, tão sem respeito e sem despedida a ocasião de sua partida. Só ele me fez ver a passagem do tempo, a perda das horas, as mudanças na vida, o progresso, a modernidade. Senti vergonha e enchi-me de medo... vergonha pelo que fiz (e fui) e medo de um dia, nessa vida, ser eu, como ele e serem os outros, como eu...

Danillo Melo
21/10/2014

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O curioso caso do celular


Desci, correndo, até o ponto mais próximo. Estava prestes a perder aquele ônibus e o próximo só chegaria por volta da meia-noite e meia. Perdi. Fiquei sentado, no ponto vazio, esperando o último ônibus da noite. Atrás de mim, uma praça escura e deserta. À minha frente, além da avenida, um casa de três andares na qual se desenrolava uma modesta festa. Eu, ora em pé, ora sentado, observava a avenida, ora cheia, ora vazia. Passavam carros, motos, ambulâncias, viaturas, pedestres... e então, subitamente, tudo ficava deserto e silencioso. A festa estava no fim. Pouco a pouco alguns homens iam saindo do prédio, passando por mim como se eu não estivesse ali e depositando sacos de lixo em algum ponto da praça. Minha espera seria longa e não havia grandes distrações. Me enchi de tédio e desejei, intimamente, algo que quebrasse aquela monotonia ou melhor, que fizesse o tempo correr e meu ônibus chegar mais rápido. Foi nesse cenário e sob essas circunstâncias que se deu o curioso caso do celular... Vi duas mulheres na avenida. Estavam arrumadas. Andavam apressadamente, como se estivessem atrasadas. Provavelmente iam a alguma festa. Passaram por mim e seguiram para longe. Alguns minutos depois, vi as mesmas mulheres voltando de onde vieram, dessa vez com mais rapidez que antes. A avenida estava deserta. Não andavam lado a lado, como da primeira vez, mas uma à frente da outra, como se fugissem. Notei um homem forte, montado numa moto, que se aproximava delas com rapidez. Minha mente de contista ganhou asas. Imaginei uma tragédia. Me assustei, internamente, mas não movi um dedo. A da frente, seguia, sem olhar para trás, dizendo à outra, em alta voz, que elas deveriam ir embora. A de trás resmungava alguma coisa para o homem que se aproximava... algo do tipo “eu compro outro, não se preocupe...”. Ele acelerou, encostou a moto próximo à calçada, tirou o capacete e olhou para ela com fúria.  Imaginei o pior... que ele sacaria uma arma e a alvejaria, ali mesmo, do outro lado da pista, há alguns metros de onde eu estava. Em vez disso, ele sacudiu, com grande força, um objeto que acertou o rosto da mulher e depois caiu no chão dando um estalo. Embora o pior não tivesse ocorrido - o que aliviou um pouco a minha tensão - fiquei chocado com a brutalidade com que ele a atacara. Ele me olhou ao longe - e na realidade, nem sei se me via - e me fez sentir medo. Permaneci imóvel, como se nada tivesse visto e desviei o olhar. Ele subiu na moto, rapidamente, e foi embora com o ronco pesado do motor. Olhei os três desaparecerem da minha vista enquanto pensava no objeto com o qual ele tinha agredido a segunda mulher. De modo inusitado e até instantâneo, aquele objeto me aguçou a curiosidade. “Foi um celular”, pensei. Me perguntei porque ela não voltava para apanhá-lo. Enquanto divagava nisso, um jovem que passava e que tinha visto a raiva com que o homem da moto tinha partido, fez um comentário aparentemente despretensioso a respeito do quanto era perigoso aquele homem com quem aquela mulher estava se metendo. Senti medo ao pensar que eles poderiam retornar e algo mais acontecesse. Olhei na direção para onde o homem da moto havia partido sem conseguir tirar o celular da mente. Desejei vê-lo e saber o que havia nele que provocara tamanho desentendimento. A festa tinha terminado. Observei as pessoas entrarem nos carros e irem embora sem notar o objeto, no chão, há alguns metros de onde estavam reunidos. Desejei que eles não o vissem. Queria vê-lo eu mesmo. Alguns minutos depois, a dona da casa fechava as portas, enquanto eu olhava para os lados, apreensivo, com vontade de ir até o celular no chão, mas com medo que o misterioso motoqueiro voltasse e me flagrasse mexendo nele. A mulher da casa fechava as portas, olhando para os lados, apreensiva, com medo de mim. Desejei que ela também não visse o celular no chão. Comecei a desejar ainda mais aquele objeto. Quis que ele fosse meu. Talvez pelo meu próprio aparelho ser exageradamente ultrapassado ou pelo calor daquela aventura, ou pelos dois. A mulher foi embora. Comecei a planejar como faria para pegar o celular sem chamar a atenção, mesmo não vendo ninguém se aproximar. Me senti clandestino, ilegal, aproveitador barato. Me achei um idiota, inconsequente, um louco na madrugada, um cronista, dentro da própria crônica, cheia de suspense e mistério... Foi quando ouvi uma música tocar. Era um brega. “É o celular tocando. Só pode ser”, pensei, eu, com surpresa. Fiquei indeciso. Uma parte de mim desejava ir até lá, pegar o celular e desligá-lo. Achei isso desleal e repreendi a mim mesmo por cogitar ato tão mesquinho. Outra parte de mim desejava pegar o celular e atender a ligação. Essa parte foi a mais refutada pelas outras, por sua ideia ter sido julgada a mais idiota. E ainda outra parte de mim desejou correr dali o mais rápido possível, pois se o aparelho tocava é porque alguém podia estar a procurá-lo... e podia ser o estranho motoqueiro. Essa era a ideia mais aceita por todas as partes. Enquanto descobria o que fazer, vi um grupo de quatro pessoas vindo pelo calçada que pela direção que seguiam passariam exatamente no lugar onde o objeto se encontrava. Os observei com olhos compenetrados e torci pra que ninguém visse o que eu tanto queria. Não ouvia mais música alguma. O grupo passou e ninguém sequer olhou para baixo. Criei coragem, por fim, e me levantei de onde estava, seguindo em direção ao lugar onde encontraria o objeto do meu desejo, o santo graal da minha aventura, o pássaro de fogo da minha fábula. Andei com passos leves, como quem não quer nada, atravessei a rua e segui pela calçada... Olhei para os lados mais uma vez, antes de olhar para o chão. Aquele momento tão esperado chegara. Nem cheguei a me abaixar... era um relógio quebrado!... E embora ninguém me assistisse, senti vergonha de mim mesmo – e da minha imaginação de cronista - e segui em frente, disfarçadamente, para outra parada, como se nada tivesse acontecido. Estava muito monótona aquela parada mesmo...

Danillo Melo
09/06/2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Nunca fui militante

Quando eu era criança, havia dois momentos atípicos no dia a dia da sociedade que muito me chamavam a atenção e até hoje se mantem bem vivos em minha memória. Eram o carnaval e as eleições. O primeiro, era uma festa, o segundo, era quase o primeiro. Eram muitas as semelhanças. Ambos carregavam multidões. Levavam pessoas de um lado para o outro. Os dois eram recheados de músicas, pessoas públicas, lixo e poluição visual e sonora. Do carnaval, trago até hoje, em sua maioria, lembranças doces, que coincidem com a minha descoberta da música pernambucana e com a descoberta de mim mesmo, enquanto músico. Das disputas eleitorais, trago lembranças de bandeiras, as mais diversas, se erguendo como o estandarte do Bloco das Flores, no Recife Antigo, endossadas, porém, nesse caso, por gritos de guerra, sons de caixas, músicas de candidatos e um mar (quase que literalmente, um mar) de panfletos... Do carnaval, trago uma paixão comedida, mas sempre presente, que praticamente não me deixa um ano sem prestigiá-lo. Da "festa da democracia", como a chamam por aí, trago uma nuvem negra que teima ( e vem teimando há algum tempo) em não cessar de derramar chuvas de descrença e de desesperança à respeito de tudo que "rola" nessa festa. Fosse esse turbilhão de informações e sons e imagens mais eficaz, eu poderia ser, hoje, um militante da causa de algum partido político sei lá de onde, que acredita em sei lá o quê, no entanto, não sou, nem nunca fui. Nunca fui militante. Nem pretendo ser. Todavia não serei radical ao ponto de dizer que nunca o serei. Como canta Gal Costa: "talvez quem sabe um dia..." No dia em que a militância for menos cega, mais razão, menos mercenária, mais ideologia ... talvez nesse dia... quando partidos deixarem de ser defendidos como se fossem organizações religiosas  ou clubes de futebol... quando esquerda, direita e centro não se traduzirem na mesma coisa... aí eu milito... visto a camisa como um abadá e corro atrás do trio, do quarteto ou seja lá qual for a coligação honesta que se estabeleça... torço, grito, choro e ponho a mão na cabeça quando a meta for a luta em vez de só o discurso.... oro e peço ajuda quando os desafios parecerem intransponíveis mas ninguém desistir de enfrentá-los... ergo a voz e o estandarte quando a honestidade for a bandeira e luto quando o Brasil for o bloco e o bem geral for a causa... milito ,sim... quando for pra tomar partido do povo, pois esse é o meu partido... é essa  minha militância... por uma sociedade mais igual e menos segregadora, por uma nação mais rica e mais pacífica. Pois eu sou militante... Sempre fui militante! E você? Não é?

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Cale a boca do pastor e nada nos faltará.

Numa terra nem um pouco distante. Em 1958. Nascera uma criança com uma anomalia genética no mínimo inusitada. Nascera com o ânus no lugar da boca. Isso. O cu no lugar da boca. E, por incrível que pareça, isso nunca fora um problema para aquela criança. Muito pelo contrário. O rapazote criou orgulho do cu que ostentava no rosto. E, na verdade, isso virou sua marca.
O tempo passou. Estudou Psicologia. Formou-se. Ambicioso, como somos.  Viu na boca-cu a maior jogada de marketing de sua vida. Fez da boca-cu a sua obra. Abriu uma igreja. Ganhou seguidores. Muitos. Virou um dos maiores empreendedores da fé. Nessa terra tão distante. Queria mais. Fez um programa de TV. Ganhou ainda mais seguidores. E ficou famoso nacionalmente.
Pois é, caros amigos. Nosso querido rapazote virou homem grande. Pastor. Dono de um império religioso. Tem o poder de mudar o programa de governo de uma candidata a presidência. Virou um homem de sucesso. Graças a Deus.
Hoje. Continua falando merda. Formando opiniões de merda. E cagando pros seus seguidores aplaudirem.

Não é, Malafaia?

- Gleison Nascimento-

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Que se danem as formiguinhas

Cheguei do futebol, madrugada adentro e dei uma olhada despretensiosa no facebook. Cliquei no primeiro link que realmente me chamou a atenção. Era uma matéria curiosa, de um site qualquer, que trazia um vídeo inusitado de uma experiência inusitada: jogaram alumínio líquido dentro de um formigueiro. O resultado foi uma peça bela e interessante, que sugeria uma obra de arte, criada pela tão conhecida engenhosidade das formigas. Desci um pouco mais naquela página e comecei a ler os comentários que ali existiam ao mesmo tempo que organizava minhas próprias observações acerca da tal experiência. O que se seguiu após essa outra despretensiosa consulta foi uma embate interno entre as várias opiniões postadas ali e as minhas, postadas aqui, nessa mente fértil de cronista. Enquanto lia e refletia sobre o que lia, parecia curtir e "descurtir", aplaudir e vaiar, internamente, cada comentário exibido ali, como se minha opinião sobre o assunto estivesse sendo moldada, tal qual o alumínio nos vãos e "desvãos" do formigueiro. Inicialmente, pensei, com ironia: "Quem foi o indivíduo que teve a brilhante ideia de jogar alumínio líquido dentro de um formigueiro?" Segundos depois pensei nas formigas. Confesso que senti pena. Coitadas! Morreram à serviço do que muitos, provavelmente, chamaram arte. À serviço não! Foram mortas de forma cruel e arbitrária. Li comentários exaltados e recheados de insultos que condenavam veementemente os que haviam se interessado pela experiência, como se estes fossem nazistas a matar inocentes e a fazer com eles experimentos científicos que seriam justificados pelo bem que trariam a humanidade. Senti vergonha de ter demorado tantos segundos até pensar nas formiguinhas. Mas achei um exagero tamanha revolta. Havia comentários filosóficos que falavam das formigas como seres vivos e merecedores de respeito e dos humanos como seres vivos e cheios de  desrespeito e de futilidades. Havia piadas e palavrões. Não me contive e ri do exagero destes e do humor negro daquelas. Mas o comentário que mais me chamou a atenção dizia exatamente assim: " Ter dó da formiga que está no quintal dos outros é fácil!". Pensei no meu quintal. E nas formigas dele. Pensei o quanto seria interessante acabar com um formigueiro indesejável que houvesse nele e, além disso, levar para casa uma peça, no mínimo, interessante, para adornar a sala. Pensei nas formigas que fazem fila indiana pelo quarto, pela cozinha, pelo banheiro e que se metem dentro dos potes de açúcar e vão parar no suco do almoço. Por alguns instantes as quis mortas. Concordei com o comentário citado acima e também com alguns outros que comportavam tal ideia ou pensamento... É moda ter ideologia no Brasil dos protestos. Ter o que dizer ou opinar sobre tudo, com clareza, firmeza e destemor. A dúvida, a incerteza ou a ignorância, ainda que efêmeras, são condenáveis. Mas nem tudo é o que parece ser e nem todos tem o que parecem ter. Pois por que, então, o poeta cantaria: "Ideologia, eu quero uma pra viver!" ? Vá em frente, caro leitor, e chame a isso do que quiser: falsa moral, hipocrisia ou qualquer outra coisa do tipo... eu chamo de pseudo-ideologia. É tudo falso, camuflado, egocêntrico, político. É ser corrupto e corruptível, mesquinho e patético. Aqui, no país sede da pseudo-ideologia, é muito "alumínio" pra pouca "formiga". E não surge, disso, obra de arte alguma... Saí daquela página com medo de ser pseudo-ideológico e contraditório, mas ao mesmo tempo feliz por não "ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Discordei de ambos os grupos, individualmente. Dos que aprovaram e dos que desaprovaram a experiência. Mas concordei com ambos. Descobri que a ideologia é coisa muito complexa para a minha humilde crônica filosófica ou minha efêmera experiência epifânica. Ela não é coisa banal, que se compra numa esquina, se proclama em outra e se vende numa terceira. Vai mais além... Ela ultrapassa a medida das formigas e as fronteiras do formigueiro...



-Danillo Melo-
  13/12/2013

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Uma crônica na esquina

Eram quase três da madrugada. Estávamos eu e o poeta Gleison Nascimento discutindo as coisas da vida, como dois filósofos. A rua estava um breu. Um possível observador da madrugada notaria, com provável curiosidade, que dois poetas pequenos - embora se vissem  grandes - conversavam, noite adentro, como se estivessem batendo um papo, numa calma tarde de verão. Somente os guardas noturnos, que circulavam com frequência sobre suas motos, quebravam a calmaria reinante. Essas conversas, o leitor conhece bem, porque já foram mencionadas em crônicas anteriores. Vão do impiedoso capitalismo ao tão comentado preconceito sexual e dos problemas de relacionamento afetivo aos de criação literária. Esses e tantos outros assuntos são temas de conversas que varam a madrugada, acompanhadas por um silêncio pacificador, que não se vê em outros momentos num bairro do subúrbio do Recife, e por dois copos descartáveis e um refrigerante de dois litros. Se poetas fazem coisa mais produtiva na madrugada, nós não sabemos. Aquela parece ser a nossa maneira mais comum de sermos poetas. Já tínhamos tomado todo o refrigerante e mudado de calçada. Estávamos de pé e já tínhamos falado sobre os protestos no Brasil e no namoro. Já tínhamos conversado sobre nossos projetos literários e nossa falta de inspiração. Foi aí que avistamos um gênero literário... na esquina... Era um homem velho, nos seus quase oitenta anos, andando de lá para cá, batendo com sua bengala no chão, como se marcasse seus passos. Vinha de alguma lugar, parava na esquina e passava vários segundos ali, distante, com a mão na testa, como se observasse a avenida, ao longe, ou o horizonte, mais longe ainda, ou como se visse ou esperasse alguém. Depois disso, voltava para o lugar de onde viera e pouco tempo depois recomeçava o ciclo. Nunca mudava a sua cadência. Era como um balé, executado com paciência, atenção e maestria. Comentamos sobre tudo aquilo, rapidamente, mas logo voltamos a nos concentrar em nossa conversa. Porém cada vez que o ciclo se repetia, ficávamos mais curiosos em nossas tentativas de explicar o que se sucedia. Analisamos a cena mais cuidadosamente: o chapéu, o casaco, a bengala, a barba, os passos, a espera, a esquina... Comentamos, ponderamos um pouco, depois sorrimos. Ficamos curiosos, depois eufóricos e entusiasmados. Começamos a divagar, em voz alta, com rapidez e insistência, com uma alegria e uma imaginação de criança e de poeta. A madrugada mostrara seu encanto. Nossa mente literária transformou aquele velho solitário num personagem. O cenário era perfeito e emblemático: a esquina. O tempo era mágico: a madrugada. E os fatos eram misteriosos. Imaginamos muito e tudo. Que aquele velho estava ali porque era um sonâmbulo. Porque era louco e tinha se perdido. Porque gostava de ficar só durante a madrugada contemplando o nada. Porque procurava sentido para uma vida que um dia já teve algum. Porque esperava por alguém que já tinha partido e de quem sentia saudades. Porque era uma entidade guardando a encruzilhada. Porque era um espírito vagando pela madrugada. Ou porque esperava, num encontro marcado, pela morte. Nossa imaginação nos levou tão longe e nos sentimos tão honrados e excitados por sermos parte daquilo que decidimos correr até a esquina e desvendar o mistério que, juntos, presenciávamos. Quando o velho deixou a esquina, deu as costas e começou a andar, lentamente, do modo que fizera desde o começo, nós corremos para a outra esquina, a esquina de nossa rua, a fim de saber para onde ele iria. Durante os poucos metros percorridos conversamos que nossa presença poderia intimidá-lo e tolher suas ações. Imaginamos o que faríamos se dobrássemos a esquina e descobríssemos que não havia homem algum na direção para onde o tínhamos visto partir. Chegamos a achar que nossa presença quebraria o encanto do que realmente deveria acontecer, mas nossa curiosidade era maior do que a possibilidade de nunca desvendarmos tal mistério. Quando chegamos na esquina, vimos o velho de pé, a poucos metros de onde saíra, repetindo os mesmo gestos que o tínhamos visto fazer repetidas vezes. Ficamos em silêncio e esperamos, ansiosos, pelo desenrolar dos fatos. O velho se virou, parecendo não se incomodar com nossa presença, e rapidamente entrou num beco escuro que ficava ao lado de um primeiro andar, com ar de abandonado, que existia a duas casa da esquina... "É o seu Zé, poeta!" - disse-me o poeta Gleison Nascimento. "Que Seu Zé?" - indaguei. "Aquele que vende algumas frutas na frente desse primeiro andar, aí, na avenida..." - respondeu ele. Em um segundo reconheci o velho que tanto havia nos fascinado naquela madrugada. Voltamos para casa um pouco decepcionados pelo resultado de nossa aventura, mas nem tanto, pois de literatos, que somos, ficamos entusiasmados em contar as nossas próprias versões do desenrolar daquela intrigante história... Tempos depois, o poeta Gleison Nascimento me apresentou um conto belíssimo, intitulado "À espera de Rosália" ( leiam, por favor). Saímos de lá felizes. Não foi um velho que vimos naquela esquina, nem um gênero literário, mas dois. Ele, o poeta, encontrou um conto. Eu, uma crônica... na esquina...Ei-la.

-Danillo Melo-
 15/10/2013