domingo, 27 de maio de 2012

Pobre velha infância!!!

O Seu Arlindo era um velho calado, tinha a pele avermelhada e, se me lembro bem, um vasto bigode. Ele morava num barraco de madeira, em cima da calçada, encostado ao muro do colégio, na esquina da rua. Seu barraco era menor que o meu quarto. Mal cabia uma cama lá dentro. Agente era criança. Agente gostava de roubar goiaba. " Arlindo, deixa agente pegar goiaba!" Ele dizia que sim com a cabeça e quando agente subia...shuááááá...era um balde d'água no corpo. E quando não era água, ele deixava o tronco do pé de goiaba todo melado de graxa. Quem subia, escorregava. Agente ria pra caramba.
André era o dono de um sítio, que ficava numa rua sem saída, dentro da nossa rua. Agente pulava o muro e ia pegar azeitona roxa. Tinha manga também. Duas frases eram o sinal de retirada: "Lá vem André!" e "Os cachorros tão soltos!" Quando alguém gritava uma das duas, todo mundo saía correndo. Era menino pra tudo quanto é lado. Até hoje eu tento entender como se consegue descer de uma árvore enorme e pular um muro relativamente grande tão rápido. O sítio que ficava ao lado do sítio do André não tinha muro. Ele se chamava "o sítio". Agente pegava coco, cajá, saputi, jaca e tamarindo. Ninguém expulsava agente de lá. Agente jogava bola toda hora, até mesmo na chuva, caindo nas poças de lama. Depois era só voltar pra casa, entrar no banheiro sorrateiramente, jogar a roupa molhada no cesto das roupas sujas e sair limpinho. "Oi, Mãe! Que calor, né?!"
Seu Dinho vendia fogos! Agente comprava um monte de rojão e ia estourar na porta da "mulher da galinha". É que ninguém gostava dela. Ela era chata, reclamava de tudo, brigava por tudo, xingava todo mundo. Agente estourava a bomba e saía correndo. E quando alguma mãe mandava algum filho ir comprar galinha lá, ninguém gostava. A "mulher da galinha" ficava desconfiada, tentando lembrar dos rostos e quando ela lembrava... " Eu vou falar com a sua mãe!!"
Seu Dinho , em Janeiro, acordava todo mundo de madrugada, com os fogos de artifício. Era o mês de São Sebastião. Ia ter parquinho, pagode, missa e mais um monte de coisas. Era só festa. Ele também entregava os doces de Cosme e Damião. A rua não era calçada. As vezes, tinha até pau-de-sebo. Agente jogava bola de gude, futebol e rodava pião no meio da rua. Quem quisesse andar de patins tinha que ir pra "pistinha" ou a "pistinha nova", porque lá era tudo calçado com piche. No bar de Raquel tinha fliperama ou playtime. Agente jogava The King of Fighters, Cadilac Dinossauro, Metal Slug e otros jogos legais. Pra jogar Super Nintendo ou PlayStation 1,tinha que ser na esquina, na casa de Seu Louro.
Tinha uma outra rua sem saída. Essa se chamava "a outra rua". Tinha como chegar lá sem precisar ir até a esquina, pegar a avenida no sentido Caxangá e dobrar a primeira à esquerda. Da nossa rua, agente passava pelo quintal de um monte de casas até dar na "outra rua". E no caminho tinha carambola, uma velha que jogava mijo em quem passava no beco de sua casa e um homem, deficiente físico e mental que toda vez que alguém passava ele apontava o dedo, como se fosse um revólver, e gritava: "Pá!!!"... Ele ficava logo no quintal da primeira casa e quando ele estava lá, a maioria de nós voltava e seguia em direção à esquina...
A brincadeira mais famosa era o "garrafão". O garrafão (uma garrafa PET com um terço dela cheio de areia) ficava no meio da rua. O "zerinho ou um, americano" (nem sei porque tem esse nome) definia quem seria "o bobo". Alguém bem forte ia lá e chutava o garrafão. O "bobo" ia correndo buscar e enquanto isso, todo mundo se escondia. Aí ele saía pra procurar todo mundo e quando achava alguém, ele tinha que voltar correndo, bater com o garrafão no chão e dizer o nome da pessoa. Se ele se descuidasse, alguém poderia chutar o garrafão novamente e ele teria que buscar de novo e a brincadeira recomeçava. Ele só deixaria de ser "o bobo"  depois que encontrasse todos que houvessem se escondido e o primeiro a ser encontrado tomaria seu lugar. O jogo durava horas! Havia mais de 10 garotos jogando ao mesmo tempo. A gritaria era enorme. E se alguém fosse chamado no meio da brincadeira, era o fim do mundo. A choradeira era grande. A tristeza era infinda.
Em toda turma tem uma criança que é um pouco má. Na nossa era o Mazinho. O apelido dele era Mauzinho. Ele gostava de amarrar as crianças menores, dar pão com pimenta pra elas e colocá-las pra brigar. As mães não queriam, obviamente, os filhos com ele. Os outros apelidos também eram legais. Tinha Bolo, Tonho da Lua, Léo Pirata, Bacia e muitos outros. Agente tinha uma maneira própria de se comunicar. Era um tipo de assobio que agente usava em comum e uns sons estranhos que agente fazia com a garganta. Dava pra entender tudo. Agente reunia a galera, todo mundo perfumado, cabelo penteado e bermuda com a camisa ensacada na frente e solta atrás e depois agente ia dar uma volta no bairro, de bicicleta ou a pé, pra conhecer e conversar com as meninas...
Um dia desses sentei na calçada, com dois amigos de infância ao meu lado e lembrei disso tudo e de outras coisas mais. A infância passou e as crianças cresceram. Toda criança vai ser um adulto, um dia. Só se vive a infância uma única vez. É a ordem natural das coisas. Não há motivos pra tristezas, só para uma boa nostalgia. Mas o que não é natural e é muito triste é que parece que a infância também cresceu. Há coisas em nossa rua que ainda estão lá. Há muitas pessoas, citadas acima, que ainda estão lá. E ainda existem crianças em nossa rua, mas a infância, ela parece que cresceu. Parece que se tornou velha, impura e burra, como os adultos...
 Sentado na calçada, eu vejo. Eu vejo crianças que trabalham como adultos, que são rudes como adultos, que chamam palavrões como adultos, que ouvem e dançam músicas como adultos, que falam e até desejam sexo como adultos, que cuidam de crianças como adultos...diante disso, eu choro, em meu âmago, de alegria, pela nostalgia que sinto e de tristeza, pela perspectiva do futuro... Por isso, eu me pergunto: Quem a achará?... Em qual brincadeira de garrafão ficou escondida a infância? ...

-Danillo Melo-
 27/05/2012


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