terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Escritor trabalha assim...


Foi numa conversa de bar, ou melhor, de lanchonete. Estávamos eu e o poeta Gleison Nascimento tomando refrigerante e conversando sobre literatura. Escritor trabalha assim, sem carteira assinada, sem bater ponto, sem chefe e muitas vezes sem ambiente de trabalho. Era sobre isso que conversávamos. Estar ali, tomando refrigerante, era trabalho. Porque escritor é assim: ele observa e vive ou vive e observa e depois escreve. Por isso, muito do que se escreve começa longe do papel e da caneta ou do notebook. Fiquei feliz e orgulhoso. Sempre quis trabalhar assim, tomando refrigerante e conversando com um velho amigo. Mas hoje foi diferente. Vou contar-lhes como...
Larguei do trabalho muito mais cedo que  de costume. Era pouco mais de uma hora da tarde e eu tinha acabado de almoçar. Ia andar muitos metros até o terminal do ônibus Engenho do Meio, então decidi ficar ali mesmo, na frente do prédio onde eu estava, no terminal do ônibus Cidade Universitária. Atravessei a rua e vi que o ônibus estava se preparando para sair. Na calçada, havia uma mulher, em pé, um tanto quanto ansiosa e duas moças, sentadas, conversando despreocupadamente. Eu me sentia o mais feliz de todos. Ia chegar em casa dentro de mais ou menos uns 15 minutos e retomar, com prazer, um conto inacabado.  Chegou a hora do ônibus partir. Eu e a mulher subimos e as duas moças, que ainda conversavam tranquilamente, nem se moveram. O ônibus partiu sem elas e eu me perguntava, então, o que elas faziam ali... Sentei feliz e despreocupado. O ônibus seguia o seu trajeto de sempre e eu só pensava no conto. De repente, o veículo entrou numa rua diferente. Fiquei surpreso. Me perguntei por que a motorista queria cortar caminho. Segundos depois, entramos num outra rua, e essa era  muito oposta ao caminho original para se tratar de um atalho. Fiquei decepcionado. Pensei ter pego o ônibus errado e tinha. Senti vontade de me levantar e ir até a cobradora com aquela cara de bobo perguntar que ônibus era aquele. Deduzi sozinho qual era o ônibus  e permaneci sentado, só para evitar ser bobo para mais alguém, além de mim mesmo. Eu sabia onde eu estava, mas não sabia o trajeto que aquela linha faria. Enquanto o ônibus se movia, eu imaginava qual o lugar que eu desceria  e que seria o mais perto possível de casa, para pegar um outro ônibus ou até mesmo ir andando. Estava a imaginar o terceiro ou quarto lugar diferente para descer quando o ônibus se afastou mais ainda de qualquer lugar que eu imaginara. Fiquei frustrado. Não fiz nada. Minha apatia externa não revelava nada da minha inquietação interna. Mentalmente, eu estava correndo de um lado para o outro. Fiquei chateado. Foi quando tudo mudou... Eu estava vivendo uma crônica! Uma crônica pronta! Levantei e fui até a cobradora. Perguntei para onde o ônibus iria e ela respondeu: "San Martin". Eu estava indo para bem longe do meu objetivo. Com certeza fiz cara de mais bobo. Ela me olhou e perguntou onde eu queria ir. Era demais pra mim ver a supresa dela quando eu desse a minha resposta. Não respondi nada. Ela me advertiu que eu deveria descer naquele momento, antes que o ônibus entrasse na avenida que o deixaria ainda mais longe do meu destino. Com pouca simpatia, ela puxou a cordinha usada para pedir parada e me disse: "você vai descer ou não?" Eu me dirigi até a porta e desci. Desci sorrindo, com cara de bobo e de cronista. Eu estava na Avenida Abdias de Carvalho. Sabia bem onde estava. E sabia que era longe de casa. Comprei uma água e andei alguns quilômetros até a Avenida Caxangá, debaixo do sol forte, pra pegar o coletivo certo. Lembrei-me das moças que conversavam com tranquilidade no terminal. Acho que elas estavam esperando Cidade Universitária, o ônibus no qual eu deveria ter subido. Sorri quando pensei nisso. E fiquei aliviado por ter pego o ônibus errado e a ideia certa. Talvez eu poderia ter descido não tão longe de casa, mas meu sacrifício involuntário e em prol da literatura, tinha valido a pena. Passei o caminho de volta para casa vivendo cada pedaço da minha crônica como seu eu fosse um deus. Senhor de cada estrutura linguística dela. Saboreando cada detalhe escrito pela minha pena imaginária e vivido, simultaneamente, por meu corpo fatigado. Cheguei em casa cansado e suado, porém feliz, louco pra gozar do penoso e prazeroso ofício de escrever. Cheguei com a crônica da semana pronta, esperando, no mundo das ideias, com ansiedade, a hora de virar texto... Entendi que é assim que um escritor trabalha... Sendo um pouco bobo também. Me senti bobo, mas escritor. Me senti meio bobo, mas todo escritor. E fiquei orgulhoso, muito orgulhoso... Mas quando vocês, queridos leitores, lembrarem-se de mim, lembrem-se mais do escritor que do bobo, porque o bobo, de escritor, tem tudo e o escritor, de bobo, não tem nada...

-Danillo Melo-
 19/02/2013