terça-feira, 23 de setembro de 2014

O curioso caso do celular


Desci, correndo, até o ponto mais próximo. Estava prestes a perder aquele ônibus e o próximo só chegaria por volta da meia-noite e meia. Perdi. Fiquei sentado, no ponto vazio, esperando o último ônibus da noite. Atrás de mim, uma praça escura e deserta. À minha frente, além da avenida, um casa de três andares na qual se desenrolava uma modesta festa. Eu, ora em pé, ora sentado, observava a avenida, ora cheia, ora vazia. Passavam carros, motos, ambulâncias, viaturas, pedestres... e então, subitamente, tudo ficava deserto e silencioso. A festa estava no fim. Pouco a pouco alguns homens iam saindo do prédio, passando por mim como se eu não estivesse ali e depositando sacos de lixo em algum ponto da praça. Minha espera seria longa e não havia grandes distrações. Me enchi de tédio e desejei, intimamente, algo que quebrasse aquela monotonia ou melhor, que fizesse o tempo correr e meu ônibus chegar mais rápido. Foi nesse cenário e sob essas circunstâncias que se deu o curioso caso do celular... Vi duas mulheres na avenida. Estavam arrumadas. Andavam apressadamente, como se estivessem atrasadas. Provavelmente iam a alguma festa. Passaram por mim e seguiram para longe. Alguns minutos depois, vi as mesmas mulheres voltando de onde vieram, dessa vez com mais rapidez que antes. A avenida estava deserta. Não andavam lado a lado, como da primeira vez, mas uma à frente da outra, como se fugissem. Notei um homem forte, montado numa moto, que se aproximava delas com rapidez. Minha mente de contista ganhou asas. Imaginei uma tragédia. Me assustei, internamente, mas não movi um dedo. A da frente, seguia, sem olhar para trás, dizendo à outra, em alta voz, que elas deveriam ir embora. A de trás resmungava alguma coisa para o homem que se aproximava... algo do tipo “eu compro outro, não se preocupe...”. Ele acelerou, encostou a moto próximo à calçada, tirou o capacete e olhou para ela com fúria.  Imaginei o pior... que ele sacaria uma arma e a alvejaria, ali mesmo, do outro lado da pista, há alguns metros de onde eu estava. Em vez disso, ele sacudiu, com grande força, um objeto que acertou o rosto da mulher e depois caiu no chão dando um estalo. Embora o pior não tivesse ocorrido - o que aliviou um pouco a minha tensão - fiquei chocado com a brutalidade com que ele a atacara. Ele me olhou ao longe - e na realidade, nem sei se me via - e me fez sentir medo. Permaneci imóvel, como se nada tivesse visto e desviei o olhar. Ele subiu na moto, rapidamente, e foi embora com o ronco pesado do motor. Olhei os três desaparecerem da minha vista enquanto pensava no objeto com o qual ele tinha agredido a segunda mulher. De modo inusitado e até instantâneo, aquele objeto me aguçou a curiosidade. “Foi um celular”, pensei. Me perguntei porque ela não voltava para apanhá-lo. Enquanto divagava nisso, um jovem que passava e que tinha visto a raiva com que o homem da moto tinha partido, fez um comentário aparentemente despretensioso a respeito do quanto era perigoso aquele homem com quem aquela mulher estava se metendo. Senti medo ao pensar que eles poderiam retornar e algo mais acontecesse. Olhei na direção para onde o homem da moto havia partido sem conseguir tirar o celular da mente. Desejei vê-lo e saber o que havia nele que provocara tamanho desentendimento. A festa tinha terminado. Observei as pessoas entrarem nos carros e irem embora sem notar o objeto, no chão, há alguns metros de onde estavam reunidos. Desejei que eles não o vissem. Queria vê-lo eu mesmo. Alguns minutos depois, a dona da casa fechava as portas, enquanto eu olhava para os lados, apreensivo, com vontade de ir até o celular no chão, mas com medo que o misterioso motoqueiro voltasse e me flagrasse mexendo nele. A mulher da casa fechava as portas, olhando para os lados, apreensiva, com medo de mim. Desejei que ela também não visse o celular no chão. Comecei a desejar ainda mais aquele objeto. Quis que ele fosse meu. Talvez pelo meu próprio aparelho ser exageradamente ultrapassado ou pelo calor daquela aventura, ou pelos dois. A mulher foi embora. Comecei a planejar como faria para pegar o celular sem chamar a atenção, mesmo não vendo ninguém se aproximar. Me senti clandestino, ilegal, aproveitador barato. Me achei um idiota, inconsequente, um louco na madrugada, um cronista, dentro da própria crônica, cheia de suspense e mistério... Foi quando ouvi uma música tocar. Era um brega. “É o celular tocando. Só pode ser”, pensei, eu, com surpresa. Fiquei indeciso. Uma parte de mim desejava ir até lá, pegar o celular e desligá-lo. Achei isso desleal e repreendi a mim mesmo por cogitar ato tão mesquinho. Outra parte de mim desejava pegar o celular e atender a ligação. Essa parte foi a mais refutada pelas outras, por sua ideia ter sido julgada a mais idiota. E ainda outra parte de mim desejou correr dali o mais rápido possível, pois se o aparelho tocava é porque alguém podia estar a procurá-lo... e podia ser o estranho motoqueiro. Essa era a ideia mais aceita por todas as partes. Enquanto descobria o que fazer, vi um grupo de quatro pessoas vindo pelo calçada que pela direção que seguiam passariam exatamente no lugar onde o objeto se encontrava. Os observei com olhos compenetrados e torci pra que ninguém visse o que eu tanto queria. Não ouvia mais música alguma. O grupo passou e ninguém sequer olhou para baixo. Criei coragem, por fim, e me levantei de onde estava, seguindo em direção ao lugar onde encontraria o objeto do meu desejo, o santo graal da minha aventura, o pássaro de fogo da minha fábula. Andei com passos leves, como quem não quer nada, atravessei a rua e segui pela calçada... Olhei para os lados mais uma vez, antes de olhar para o chão. Aquele momento tão esperado chegara. Nem cheguei a me abaixar... era um relógio quebrado!... E embora ninguém me assistisse, senti vergonha de mim mesmo – e da minha imaginação de cronista - e segui em frente, disfarçadamente, para outra parada, como se nada tivesse acontecido. Estava muito monótona aquela parada mesmo...

Danillo Melo
09/06/2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Nunca fui militante

Quando eu era criança, havia dois momentos atípicos no dia a dia da sociedade que muito me chamavam a atenção e até hoje se mantem bem vivos em minha memória. Eram o carnaval e as eleições. O primeiro, era uma festa, o segundo, era quase o primeiro. Eram muitas as semelhanças. Ambos carregavam multidões. Levavam pessoas de um lado para o outro. Os dois eram recheados de músicas, pessoas públicas, lixo e poluição visual e sonora. Do carnaval, trago até hoje, em sua maioria, lembranças doces, que coincidem com a minha descoberta da música pernambucana e com a descoberta de mim mesmo, enquanto músico. Das disputas eleitorais, trago lembranças de bandeiras, as mais diversas, se erguendo como o estandarte do Bloco das Flores, no Recife Antigo, endossadas, porém, nesse caso, por gritos de guerra, sons de caixas, músicas de candidatos e um mar (quase que literalmente, um mar) de panfletos... Do carnaval, trago uma paixão comedida, mas sempre presente, que praticamente não me deixa um ano sem prestigiá-lo. Da "festa da democracia", como a chamam por aí, trago uma nuvem negra que teima ( e vem teimando há algum tempo) em não cessar de derramar chuvas de descrença e de desesperança à respeito de tudo que "rola" nessa festa. Fosse esse turbilhão de informações e sons e imagens mais eficaz, eu poderia ser, hoje, um militante da causa de algum partido político sei lá de onde, que acredita em sei lá o quê, no entanto, não sou, nem nunca fui. Nunca fui militante. Nem pretendo ser. Todavia não serei radical ao ponto de dizer que nunca o serei. Como canta Gal Costa: "talvez quem sabe um dia..." No dia em que a militância for menos cega, mais razão, menos mercenária, mais ideologia ... talvez nesse dia... quando partidos deixarem de ser defendidos como se fossem organizações religiosas  ou clubes de futebol... quando esquerda, direita e centro não se traduzirem na mesma coisa... aí eu milito... visto a camisa como um abadá e corro atrás do trio, do quarteto ou seja lá qual for a coligação honesta que se estabeleça... torço, grito, choro e ponho a mão na cabeça quando a meta for a luta em vez de só o discurso.... oro e peço ajuda quando os desafios parecerem intransponíveis mas ninguém desistir de enfrentá-los... ergo a voz e o estandarte quando a honestidade for a bandeira e luto quando o Brasil for o bloco e o bem geral for a causa... milito ,sim... quando for pra tomar partido do povo, pois esse é o meu partido... é essa  minha militância... por uma sociedade mais igual e menos segregadora, por uma nação mais rica e mais pacífica. Pois eu sou militante... Sempre fui militante! E você? Não é?

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Cale a boca do pastor e nada nos faltará.

Numa terra nem um pouco distante. Em 1958. Nascera uma criança com uma anomalia genética no mínimo inusitada. Nascera com o ânus no lugar da boca. Isso. O cu no lugar da boca. E, por incrível que pareça, isso nunca fora um problema para aquela criança. Muito pelo contrário. O rapazote criou orgulho do cu que ostentava no rosto. E, na verdade, isso virou sua marca.
O tempo passou. Estudou Psicologia. Formou-se. Ambicioso, como somos.  Viu na boca-cu a maior jogada de marketing de sua vida. Fez da boca-cu a sua obra. Abriu uma igreja. Ganhou seguidores. Muitos. Virou um dos maiores empreendedores da fé. Nessa terra tão distante. Queria mais. Fez um programa de TV. Ganhou ainda mais seguidores. E ficou famoso nacionalmente.
Pois é, caros amigos. Nosso querido rapazote virou homem grande. Pastor. Dono de um império religioso. Tem o poder de mudar o programa de governo de uma candidata a presidência. Virou um homem de sucesso. Graças a Deus.
Hoje. Continua falando merda. Formando opiniões de merda. E cagando pros seus seguidores aplaudirem.

Não é, Malafaia?

- Gleison Nascimento-