Sua mãe deu sinal. O ônibus parou. A porta abriu-se. Subiu,
soberbo, como quem vai receber um prêmio. Sacou 1,10R$ do bolso, como quem saca
um distintivo. Era domingo. Entregou a quantia ao cobrador do ônibus, sem ao
menos lhe cumprimentar. Segurou com firmeza, nas duas mãos, a catraca que lhe
era muito pesada. Impôs certa força e a empurrou. Passou!
Assim o João Neto, com seus seis anos de idade recém
completados, pagou passagem pela primeira vez. Você pode pensar que é besteira
pagar passagem... Pode até achar que seria mais vantagem não pagá-la, mas é por
que você não sabe (Não lembra, melhor dizendo.) o quanto é incômodo ter que,
toda vez, espojar a roupa limpa e a dignidade no chão para poder andar em um
coletivo. João sabia. Agora não mais.
Você já imaginou um rapaz de dezesseis anos tendo que se
deitar no chão e passar por baixo da catraca? Coitado, não ia comer ninguém. E
um homem com seus vinte e tantos anos de idade tendo que fazer o mesmo? Não dá.
Isso fica fora de cogitação... A cerveja nos proporciona uma barriguinha desproporcional
nessa idade. Depois dos cinquenta é que não dá mesmo. A idade e o pudor não nos
privam e nos livram algumas coisas.
Aquilo tinha que mudar um dia. Ele se sentiu feliz que fosse
logo. Sentia-se um homem. Merecia respeito aquele garoto. Afinal de contas, já
pagava passagem. Agora estava mais perto da vida. Daqui a uns anos... Tomar uma
cerveja num bar. Fumar um Derby Azul. Queimar um baseado. Namorar. Transar.
Separar. Transar. O primeiro passo já foi dado para a vida e ele nem tinha
noção de todo esse significado. Prendia-se apenas à alegria de não ter mais que
deitar no chão, se dando ao ridículo. Naquele momento sentia-se pleno por este
fato e só. Virar número no senso é necessário para o crescimento do homem.
Acontece que o tempo passa. Daqui a uns anos o João vai
enjoar de andar de ônibus. Ter que acordar cedo para ir trabalhar e ainda pegar
um ônibus lotado? Vida de cão. Ninguém merece, não é mesmo? Comprar um carro se
fará necessário na vida desse garoto, que não mais será um garoto. Enfim, não
quero me apegar aos fatos futuros tendo em vista que ainda não são fatos.
Vendo a feição do
João ao passar pela catraca, fui levado aos tempos de minha meninice. Quando
eu, também, ainda não pagava passagem. Lembro-me da primeira vez que tive o
prazer de girar a catraca. Com que gosto eu o fiz. Tive uma sensação de potência
como até hoje não tive igual. Pisei o chão com firmeza e com certo desprezo.
Agora só os meus pés é que ele iria tocar. Nunca mais minhas camisas brancas
teriam marcas da sujeira do frio alumínio. Nunca mais costas ao chão.
Admirei aquele momento com certa nostalgia, confesso. Queria
dar um abraço no garoto e dizer que entendia o quanto aquilo era importante.
Contive a vontade. Só lhe perguntei seu nome para, hoje, poder citar com
precisão nessas linhas. Guardei o livro, que estava, antes, lendo e que a essa
hora já estava desprezado, pedi parada. Desci do ônibus. Subi no próximo, só
para ter o prazer de sentir com mais atenção a sensação de passar numa catraca.
Faça o mesmo, leitor. Você vai perceber o quanto é interessante a sensação.
Sensação, esta, que passa despercebida, todos os dias, por estarmos distraídos com
outras coisas. Sinta-se um pouco João Neto. Como eu me senti. Como você um dia
já se sentiu.
Eu, naquele momento, fui mais feliz que o próprio garoto. Ele
descobriu um gosto novo e, de carona na sua descoberta, eu redescobri um gosto
que há tempos não sentia.
Só existe uma coisa melhor que conhecer algo desconhecido. É
reconhecer este algo esquecido. Naquele momento eu me vi naquele garoto. Por
alguns instantes eu fui ele e ele foi eu. Queria poder agradecer.
-Gleison Nascimento, 26/06/2012-
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