segunda-feira, 25 de junho de 2012

João neto e a catraca.


Sua mãe deu sinal. O ônibus parou. A porta abriu-se. Subiu, soberbo, como quem vai receber um prêmio. Sacou 1,10R$ do bolso, como quem saca um distintivo. Era domingo. Entregou a quantia ao cobrador do ônibus, sem ao menos lhe cumprimentar. Segurou com firmeza, nas duas mãos, a catraca que lhe era muito pesada. Impôs certa força e a empurrou. Passou!
Assim o João Neto, com seus seis anos de idade recém completados, pagou passagem pela primeira vez. Você pode pensar que é besteira pagar passagem... Pode até achar que seria mais vantagem não pagá-la, mas é por que você não sabe (Não lembra, melhor dizendo.) o quanto é incômodo ter que, toda vez, espojar a roupa limpa e a dignidade no chão para poder andar em um coletivo. João sabia. Agora não mais.
Você já imaginou um rapaz de dezesseis anos tendo que se deitar no chão e passar por baixo da catraca? Coitado, não ia comer ninguém. E um homem com seus vinte e tantos anos de idade tendo que fazer o mesmo? Não dá. Isso fica fora de cogitação... A cerveja nos proporciona uma barriguinha desproporcional nessa idade. Depois dos cinquenta é que não dá mesmo. A idade e o pudor não nos privam e nos livram algumas coisas.
Aquilo tinha que mudar um dia. Ele se sentiu feliz que fosse logo. Sentia-se um homem. Merecia respeito aquele garoto. Afinal de contas, já pagava passagem. Agora estava mais perto da vida. Daqui a uns anos... Tomar uma cerveja num bar. Fumar um Derby Azul. Queimar um baseado. Namorar. Transar. Separar. Transar. O primeiro passo já foi dado para a vida e ele nem tinha noção de todo esse significado. Prendia-se apenas à alegria de não ter mais que deitar no chão, se dando ao ridículo. Naquele momento sentia-se pleno por este fato e só. Virar número no senso é necessário para o crescimento do homem.
Acontece que o tempo passa. Daqui a uns anos o João vai enjoar de andar de ônibus. Ter que acordar cedo para ir trabalhar e ainda pegar um ônibus lotado? Vida de cão. Ninguém merece, não é mesmo? Comprar um carro se fará necessário na vida desse garoto, que não mais será um garoto. Enfim, não quero me apegar aos fatos futuros tendo em vista que ainda não são fatos.
 Vendo a feição do João ao passar pela catraca, fui levado aos tempos de minha meninice. Quando eu, também, ainda não pagava passagem. Lembro-me da primeira vez que tive o prazer de girar a catraca. Com que gosto eu o fiz. Tive uma sensação de potência como até hoje não tive igual. Pisei o chão com firmeza e com certo desprezo. Agora só os meus pés é que ele iria tocar. Nunca mais minhas camisas brancas teriam marcas da sujeira do frio alumínio. Nunca mais costas ao chão.
Admirei aquele momento com certa nostalgia, confesso. Queria dar um abraço no garoto e dizer que entendia o quanto aquilo era importante. Contive a vontade. Só lhe perguntei seu nome para, hoje, poder citar com precisão nessas linhas. Guardei o livro, que estava, antes, lendo e que a essa hora já estava desprezado, pedi parada. Desci do ônibus. Subi no próximo, só para ter o prazer de sentir com mais atenção a sensação de passar numa catraca. Faça o mesmo, leitor. Você vai perceber o quanto é interessante a sensação. Sensação, esta, que passa despercebida, todos os dias, por estarmos distraídos com outras coisas. Sinta-se um pouco João Neto. Como eu me senti. Como você um dia já se sentiu.
Eu, naquele momento, fui mais feliz que o próprio garoto. Ele descobriu um gosto novo e, de carona na sua descoberta, eu redescobri um gosto que há tempos não sentia.
Só existe uma coisa melhor que conhecer algo desconhecido. É reconhecer este algo esquecido. Naquele momento eu me vi naquele garoto. Por alguns instantes eu fui ele e ele foi eu. Queria poder agradecer.

-Gleison Nascimento, 26/06/2012-

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